Tudo Sempre Igual

Cotidiano
Chico Buarque
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pr'eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pr'o jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pr'eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pr'eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso…

Belíssimo poema e música do grande Chico Buarque que nesta ocasião de virada de ano quero comparar com outra maravilhosa música, cantata magnificamente também por ele nos anos 70:

Um dia ele chegou tão Diferente

Valsinha
Vinicius de Moraes
Um dia ele chegou tão diferente
Do seu jeito de sempre chegar
E olhou-a dum jeito mais quente
Do que sempre costuma olhar
E não maldisse a vida tanto
Quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto
Pra seu grande espanto convidou-a pra dançar
E aí ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Então os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos tantos risos roucos
como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

Chegar diferente

O ano só será de fato novo na proporção em que tivermos a coragem de “Chegarmos tão diferentes do nosso jeito de sempre chegar”.
Fazendo “todo dia tudo sempre igual”, chegaremos eternamente aos mesmos resultados e nos aprisionaremos cada vez mais às correntes das ilusões sobre nós mesmos.

“…E ai ela se fez bonita…”


“…E aí ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar…”
O chegar diferentes, espontâneos, livres, nos faz bonitos e ousados. Expressamos a beleza própria da ousadia, do novo, do inusitado. Quem não é mais belo ao interagir com uma criança feliz? A espontaneidade é profundamente contagiante, por isso queremos estar perto e interagir com as crianças, nos sentimos alegres, felizes… e nos tornamos “mais bonitos”.

Consciência, Espontaneidade e Intimidade

Eric Berne, criador da Análise Transacional propunha três parâmetros fundamentais de saúde: Consciência, Espontaneidade e Intimidade.

Consciência

Consciência implica no que em teoria Reichiana chamamos de Contato, isto é, percebermos o que estamos sentindo e sabermos o porque daquele sentimento. O “fazer tudo sempre igual” pode ser o oposto da Consciência. Pode implicar numa repetição compulsiva que utilizamos como fuga do sofrimento. No extremo seríamos como autômatos ou zumbis, que caminham com pouquíssima percepção de si, dos outros, da natureza…

Espontaneidade

Em última instância seria estarmos livres de ilusões sobre nós mesmos, livres de rótulos que de fato nos aprisionam em círculos viciosos auto-hipnóticos e auto reforçadores. Espontaneidade é também sermos “metamorfose abulante…”. É reagirmos ao presente de maneira livre. E aqui sempre as crianças são nossos maiores mestres, aqueles a quem pertence “O Reino dos Céus”.

Intimidade

“Encontro de duas ou mais pessoas, comungando suas vulnerabilidades”. Encontro não a partir de nossas imagens, nossas ilusões, nossas máscaras…
“…Depois o dois deram-se os braços
Como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça
Foram para a praça e começaram a se abraçar …” Dar os braços, dar as mentes, dar os corações. Viver o outro, sentir com o outro o que o outro está sentindo. Perceber na ótica da outra pessoa… Tudo isso nos faz Ser diferentes, sair de nossa rotina prevista, repetitiva e escravizadora. Fazer-se Um com quem está por perto, estimula profundamente nosso cérebro, amplia nossos limites, estimula nosso corpo a novos movimentos… pode nos abrir novos horizontes.

“…E o dia amanheceu em Paz”

Paz que é produto natural da convivência humana consciente, espontânea e íntima. Quando então nos encontramos e nos identificamos a partir do melhor de nós mesmos.

Cultivo da Paz

Como internamente somos múltiplos e conflituosos. “…Quero fazer o bem, mas faço o mal que não quero…” já disse o grande Paulo apóstolo. A Paz de fato é para nós uma conquista, uma meta a ser buscada continuamente. A Presença em cada contato e ação, o fazer com solenidade, sem pressa e colocando amor… Tudo isso desenvolve o melhor de nós, desperta o nosso Sábio interior.

Chegando diferente no novo ano

As ilusões nos levam a esperar… Mas “Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer…” O novo ano será de fato novo na proporção em que colocarmos “…Vinhos novos em odres novos…”. Isso requer coragem, mas vale a pena.

A pequena lagoa

Um sapo, vindo do mar, cai em uma pequena lagoa e encontro um companheiro. Este lhe pergunta: “- de onde você vem?” – “venho do mar, responde. ” -“Mar, o que é isso?” pergunta. – “Há é muita, muita água..”. -“Muita quanto? Como a metade desta minha lagoa?” pergunta o outro. – “Não! Muito, muito maior…” – “Grande como minha lagoa?” – “Não! Muito, muito maior” . – “Não acredito, não existe nada maior que esta minha lagoa…!”

Que neste novo ano possamos descobrir e experimentar o quanto é imensa a Vida com todas as suas possibilidades. O quanto é bem maior que nossa “pequena lagoa”.

Deixe um comentário